Com saudade do Rio Negro de antigamente, Daria de Sousa, de 79 anos, olha pela varanda da sua casa palafita. “Aquelas águas eram limpinhas, eu costumava lavar as roupas, tomar banho, nadar com a minha família e passear de canoa”, conta.
Na rua Universal, 192, do bairro Educandos, em Manaus, capital do estado do Amazonas, ela mora desde que nasceu. Na década de 1940, aquela região foi palco de momentos felizes de sua infância, que estão guardados na sua memória e nem de longe parecem com o cenário que se vê hoje.
Ela se casou e criou seus 18 filhos nessa casa erguida em estacas de madeira sobre o rio Negro. Nas paredes da sala, Daria, viúva há seis meses, exibe orgulhosa as fotos da sua numerosa família, sendo que dez membros moram ainda com ela.
Daria lembra de seus tempos de moça quando andava de bonde no Largo de São Sebastião, no Centro da cidade, e seus olhos brilham. “A gente se reunia no final da tarde e, muitas vezes, até de manhã cedo para tomar banho e assar um peixe na beira do rio. Uma água gostosa. Não tinha esse negócio de lixo na água. São tempos que não voltam mais, agora Manaus não é mais igual, está tudo poluído, se acabando na mão do homem”, avaliou.
35 toneladas de lixo por dia
Uma das principais características de Manaus é o fato de a capital amazonense ser entrecortada por cursos d’água, os igarapés, que um dia embelezaram a cidade e serviram tanto como fonte de lazer, quanto de alimentação, como bem lembra Daria.
Com a crescente evolução populacional e o avanço desordenado da região urbana da cidade, essa realidade mudou. O descarte incorreto do lixo impacta negativamente a qualidade de vida dos moradores da orla do Educandos, os quais passaram a conviver com o lixo que chega com a água do Rio Negro.
Nesta quinta-feira (27/05), o rio atingiu 29,37 metros – a maior cheia registrada no Amazonas foi a de 2021, quando o rio chegou à cota recorde de 30,02 metros em 16 de junho.
A Prefeitura de Manaus disse que recolhe aproximadamente 35 toneladas de lixo dos rios e igarapés da cidade por meio da Secretaria Municipal de Limpeza Urbana (Semulsp). O serviço consiste no recolhimento dos resíduos sólidos da superfície da água e das margens dos igarapés e orlas, além da retirada de vegetação aquática para melhorar o escoamento hídrico, mas, para os ribeirinhos, a frequência da limpeza não é suficiente.
De acordo com o coordenador das balsas da Semulsp, Marlon Chagas, esse tipo de ação é constante, principalmente durante o período de cheia. Ele faz um alerta para que a população colabore. “É o cidadão que joga o lixo, não é o rio que produz.”
Amor pelo rio
A Bacia Amazônica possui o seu ciclo natural: de junho a novembro a água desce, a chamada “vazante”, e de dezembro a maio a água sobe, o período da “cheia”.
As cheias são fenômenos naturais extremos e temporários, provocados por precipitações repentinas e de elevada intensidade que acontecem todos os anos na região.
Nesta semana, conforme dados da Defesa Civil, dos 62 municípios do estado, 35 estão em “situação de emergência” devido à cheia dos rios no Amazonas. Outros 23 municípios estão em estado de alerta.
O Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, do qual a Defesa Civil faz parte, aponta que 320.222 pessoas e 80.056 famílias estão sendo afetadas pela cheia. Daria e sua família fazem parte dessa estatística.
Do estreito corredor da casa palafita de Daria, que antes foi de seus pais, dá para ver o rio poluído repleto de lixo onde qualquer um dos seus netos ou tataranetos poderia cair, até mesmo ela, que está de avançada idade.
Apesar de a moradia não apresentar as mínimas condições sanitárias aos seus usuários, a aposentada agradece a Deus que na sua família ninguém teve uma doença grave. “Temos muitas moscas sim, e todos tomamos água da torneira, porém vivemos tranquilos”, disse com um sorriso.
Ela trabalhou para o estado prestando serviços gerais na Escola Estadual Estelita Tapajós até se aposentar e confessa que, de regresso para casa na época da enchente, já encontrou cobras e até jacarés. “Minhas filhas me dizem que já está na hora de sair daqui, mas eu me recuso, não quero. Tenho muito amor pelo rio.”
Inverno Amazônico é assim
Para a dona de casa Fátima Corrêa, 38, vizinha de Daria, o mais difícil de conviver diariamente com o cenário de poluição é o fedor. “No tempo da cheia dá aquela ‘chuvada’ que alaga isso aqui. Sem condição, é só fedor e lama. Perdemos tudo”, afirma.
Materiais como garrafas pet, resíduos domésticos e cadáveres de animais são alguns dos principais tipos de lixo a serem encontrados nos igarapés de Manaus, o que acaba causando diversos transtornos para moradores das proximidades desses locais.
Além das consequências para o meio ambiente, como a alteração das propriedades físicas, químicas e biológicas que podem gerar poluição do solo, da água e do ar, o lixo pode desencadear enchentes pela obstrução da passagem das águas e transmissão de doenças.
Onde acumulam lixo e água se propagam epidemias como dengue, zika, chikungunya, cólera, filariose, leishmaniose, leptospirose, toxoplasmose, peste bubônica entre outras, enfatizou o infectologista Nelson Barbosa.
O morador Adilerson da Silva, 32, vizinho de Fátima, também confirmou que o caso se repete todos os anos e os moradores sofrem tanto na cheia quanto com os efeitos da vazante. “O inverno Amazônico é assim mesmo. No início a gente é castigado porque, às vezes, se alaga tudo e precisamos até deixar nossas casas, e quando está secando é por causa do lixo e o fedor. São tempos de muito sofrimento”, contou.
Falta de consciência
Na opinião de Fátima Corrêa, o problema é antigo e a população precisa se conscientizar. “Não adianta nada passar uma coleta retirando tudo, se o povo continuar com esse hábito triste de achar que os igarapés são lixeiras”, afirmou.
Para Fátima, deveria haver punição para quem descarta resíduos no leito dos rios e igarapés. “Uma coisa que tenho certeza é: as pessoas só aprendem se doer no bolso, se elas forem punidas de verdade, tenho certeza de que vai diminuir ou até acabar de vez”, disse.
Adilerson contou que diariamente os moradores se unem para recolher em pequenas canoas a sujeira na tentativa de reduzir o quadro vergonhoso. “A limpeza aqui também precisa melhorar, a Semulsp faz, mas é muito devagar e não é aquela coisa constante”, reclamou.
Orla do Amarelinho: o rio é quem marca o ritmo
Uma das principais portas de entrada de Manaus por via fluvial é a orla do Amarelinho, localizada no bairro Educandos.
É um aglomerado de casas de madeira, casas ribeirinhas ou flutuantes em condições sanitárias precaríssimas que contribuem com a poluição do rio Negro.
Para o vendedor de bombons Raimundo Coutinho da Silva, de 59 anos, que trabalha na Orla do Amarelinho todos os dias, nos flutuantes é onde moram seus clientes “gente-boa”, destaca.
São caboclos ou ribeirinhos que passam em canoas para fazer compras ou levar as crianças para a escola. “Aqui a vida é difícil e perigosa, quando enche tem jacaré, cobra e outros bichos. A gente fica doente. Não dá para sossegar”, conta.
Segundo ele, essas casas flutuantes são como peixes. Morrem se ficarem fora d’água. Elas são construídas para suportar bem esse balanço que é constante e que aumenta quando cai uma tempestade ou passa um barco grande.
“E em cima delas, as famílias vivem por anos, ninguém sai do lugar”, contou.
Manaus é uma cidade entranhada pelo rio Negro, com cerca de 150 igarapés poluídos e famílias morando à sua margem.
Importância da conservação da Bacia Amazônica
O rio Amazonas, que é o maior e mais volumoso rio do mundo, resultado do encontro dos rios Negro e Solimões, leva cerca de um quinto de todo o volume de água doce aos oceanos e é responsável por 20% da água potável do planeta.
Por isso, segundo especialistas do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), a degradação ambiental compromete a disponibilidade de água doce no mundo. Afinal, a falta de preservação desequilibra o volume de chuvas, reduz o nível de água em rios e seca nascentes.
Conforme a cientista Maria Teresa Fernandez Piedade, estudos realizados pelo Inpa apontam que, das últimas décadas para cá, as cheias e as secas estão cada vez mais intensas e severas naquela região. “Isso indica que as mudanças climáticas já podem estar se fazendo sentir nestes sistemas”, sugere.
Para Maria, os problemas da Amazônia não estão restritos à região norte do Brasil. “Se os rios secam, o transporte de grãos como a soja, que é exportada, pode ser comprometido, impactando a economia nacional. A seca nos rios também afeta a produção de energia elétrica em represas como Belo Monte. Se essas represas param, o Sul e o Sudeste podem enfrentar apagões”, lembra.
“A Amazônia tem um papel importante na redistribuição da umidade, não só no Brasil, mas na América Latina. Trata-se de um sistema de circulação regional”, destaca.
Segundo a cientista todos esses fatores combinados influenciam diretamente o aumento de gases causadores do efeito estufa na atmosfera, contribuindo para o agravamento das mudanças climáticas e do aquecimento global.